quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Cinema fora de tom


Este mundo soa estranho, a sons aproximadamente idênticos aos que se ouvem no interior do intestino de uma águia careca. Ou algo semelhante no simbolismo da ideia. A liberdade aproveitou-a a humanidade para iniciar o ataque aos que a quiseram. Se não tens censura, tens limitação. Passas do lápis azul à crítica em forma de vernáculo social e assim ficas, o que existe é o que a maioria quer. E o mais espetacular e impressionante é que o que a maioria quer não faz sentido absolutamente nenhum. Podia-se pensar que seria um fenómeno de casualidade provocado por um movimento de massas, que provoca que os gostos comuns não tenham que ser simultâneos em cada um, fazendo com que cada vontade seja coerente individualmente. Mas em reflexão mais próxima, percebemos que a influência que a coletividade causa em cada um provoca a incoerência de cada elemento influenciado. E a questão que resta será a de qual o movimento de massas que iniciou toda este espetacular bolo muito mal cozido. Obviamente não há nenhum movimento iniciático, existem apenas referências, as pessoas apanham-nas de onde podem e percebem-nas como suas e pessoais quando as absorvem, a partir desse momento constituem o seu gosto. As mudanças que tornaram a cultura de cada país numa cultura global levam-nos a perceber o último movimento moderno. Antes da revolução dos meios de comunicação, os únicos processos possíveis de passagem de informação e divulgação existentes eram as palavras ditas e as escritas em papel, será fácil perceber que estas referências eram controladas pelas pessoas que nos envolviam socialmente e pelas pessoas que nos ensinavam (duas entidades necessariamente diferentes). Creio não cometer um grave erro sociológico quando penso que estas referências, assim formuladas, quando dadas pela envolvência eram mínimas e vistas como comuns, e quando dadas por alguém que nos ensinava, como algo pouco comum e digno de esforço para tentar compreender. Neste momento, a maior parte destes dois meios foi substituído por publicidade, quase única e exclusivamente. Poderíamos pensar que as pessoas continuariam a ser a maior influência, mas isso só acontece porque estão expostos à mesma publicidade. Dentro de uma comunidade ainda será maior a coincidência desta exposição. Depois disto tudo dito vem a importância que isto tem para o mundo. E esta é óbvia, em vez de uma construção vertical daquilo que nós percebemos do mundo, onde existe uma espécie de escala em função da qual era definido o comportamento em relação a cada uma das referências, existe uma construção horizontal, onde tudo é igual, tudo vem do mesmo sítio. A nossa memória assim o impõe, porque sendo a sua modalidade associativa a maior responsável pelo tipo de sentimento provocado em cada um por cada objeto visionado, a exposição de tudo no mesmo meio e da mesma maneira provoca a que nada se imponha sobre o resto. Causando uma óbvia confusão de conceitos em todas as faixas etárias. E a partir dela já os adultos gostam de filmes de adolescentes, já os adolescentes gostam de filmes de crianças, já a música deixa de ser notas em sequência e se torna numa sequência imensamente repetida de um ritmo qualquer, já a originalidade conta tanto como a cópia, já o racismo é intolerado e já a intolerância se expande a tudo o resto da mesma maneira (expandindo uma ideia que se pensa evidente e impondo-a sobre os outros), já a leitura se considera um ato igual ao de ver televisão (e que tem, portanto, de provocar o mesmo efeito), já a fotografia é um avistamento de pessoas em lugares e não de lugares vistos de uma perspetiva nova e aqui já me perdi um pouco.


Será o paradoxo das vontades e a confusão tão simples como observar uma pessoa que chega a casa após um dia extenuante de trabalho, infinitamente repetido, odiando cada minuto da tarefa eliticamente elaborada. Senta-se no seu sofá e sente a necessidade de descontrair e a melhor ideia que lhe surge é ligar a televisão e ver a sua série. E qual não é o espanto do observador que assim vê este homem descontrair da repetição com mais um pouco de repetição. Esta é certamente a escolha mais óbvia, mesmo que condicionada pela falta de escolha, afinal de contas só podemos escolher daquilo que nos é conhecido. Se não conhecemos mais nada assim ficamos, espantados e rendidos ao que a publicidade nos fornece. Afinal é nisto que se baseia a série, pegar em algo que funciona e fazê-lo uma e outra vez, não mudar quase nada, apenas reescrever o que já foi escrito, fazendo uma espécie de cópia cega. Poderia ser estranho não fosse esta a óbvia consequência de se perceber que se um filme resulta e tem muita audiência, voltar a fazer um parecido, com os mesmos atores, vai resultar igualmente bem ou ainda melhor. Não fosse assim e a Marylin Monroe não tinha carreira. Mas porquê esta tamanha resistência a algo inovador e diferente? Porquê repetir algo até à exaustão? Fosse este um fenómeno apenas português e atribui-lo-ia à saudade, assim será uma nostalgia aparente que se baseia em repetir a facilidade. Mas aqui é que volta a soar estranha a música. Então se o homem se queixa de que o trabalho não o deixa aproveitar a vida, se insiste tanto para ter férias e se repudia o seu trabalho (com tal intensidade que por vezes nem o faz bem apenas por pura maldade ou por achar que o mundo lhe deve algo), chega a casa e aproveita para fazer mais um pouco de absolutamente nada? Trabalha infindavelmente mal para ter uns minutos de descanso e insiste, nesse momento, em aproveitar a vida que tanto reclama, fazendo exatamente aquilo que tanto repudia no seu trabalho, desperdiçar mais um pouco de existência. Mas isso são idiossincrasias minhas, pensar que se existimos para andar de um lado para o outro realizando tarefas menores para depois podermos comer, dormir e aproveitar para fazer tão magnânimas tarefas mais valia sermos macacos. Mas além de toda a estranheza provocada em mim vamos à ideia em si (provocada). Se a ideia inicial poderia ser produzir algo de maior duração que um filme, em que os cenários e atores se podiam repetir, baixando custos de produção, com o objetivo de desenvolver um pouco mais histórias, adicionando profundidade às personagens (fazendo isto, que tanto custa numa longa metragem, facilmente). No fim, resultou em histórias em loop, com personagens artificiais e sem identidade (que pareceria o mais difícil de fazer). Não é frequente, e costuma ser quase impossível, encontrar um série que esteja razoavelmente bem feita. Isto reduz-se para aproximadamente zero quando se procura uma série de longa duração, ou que tenham mais de doze episódios e mesmo doze já será excessivo. Isto vem pela impossibilidade teórica de explorar uma série por muito mais tempo sem recorrer a repetições e provocando muitas vezes inconsistências. E se procurarmos séries que o façam bem para além disso encontramos apenas aquelas que contornaram esta regra. Para isso Black Adder renovou a sua história para outro período histórico a cada ciclo de seis, Flying Circus fazia-o porque eram apenas sketches e não uma série concreta em si. E no início era apenas isto que acontecia, a ideia de que uma série não podia durar muito tempo, era importante renovar e inovar. E tão de repente como isto se percebeu, que seria necessário pouca quantidade para fazer uma série de qualidade, percebeu-se também que para fazer o mesmo lucro ou ainda maior bastaria repetir a mesma coisa infinitamente, até mudando, por vezes, completamente as personagens, não de ator, mas de carácter. Fazendo até com que as leis das probabilidades se reduzam a nada e tudo aconteça a cada uma delas, até coisas consideradas impossíveis. Um personagem apanha cancro, outro é assaltado, uma personagem é raptada e quase violada, outra ganha a lotaria e perde o tiquê, um mete-se com a máfia e sai-se mal e mais alguém no meio disto descobre que só conhece pessoas bonitas e desiste do sonho de ser modelo, entretanto aparece uma amiga que também é modelo e decidem que conseguem fazer tudo, então apanham cancro, são assaltadas, raptadas e violadas e ganham a lotaria, mas sem perder o tiquê porque foram mesmo violadas. Entretanto aparece um médico, um advogado e um polícia de óculos de sol e já está a magia lançada para cinquenta horas de televisão. Percebe-se facilmente que terá de haver sempre uma renovação, artificial ou total. Que há uma incongruência entre o início e o fim, não só em personagens que são substituídas ou parecem radicalmente mudadas sem razão aparente mas até na própria forma como a série é filmada ou em como o argumento é escrito. Assim nos apercebemos que quando antes as personagens eram estanques e a ação apenas se desenvolvia à volta delas, percebemos agora que tudo se baseia nelas e descobrimos uma nova telenovela disfarçada. E a sequência é quase sempre esta, com médicos mancos ou sem eles, com naves espaciais no pós-apocalipse, advogados simpatizantes do capitão Kirk e polícias que seriam milionários se patenteassem metade da tecnologia que têm. Mesmo as grandes séries de humor observacional dos Estados Unidos, que começaram com Seinfeld, continuaram com Curb Your Enthusiasm e continuam agora no seu expoente máximo com Louie, parece que se gastam com tal rapidez que cedo têm de repetir temáticas e gags disfarçadamente para parecer algo de novo.


Entretanto também parece que os realizadores de cinema, nos seus grandes assentos de cetim se apercebem de alguma desta magia e decidem que também deviam fazer algo que tivesse sempre traços semelhantes, algo que mostrasse às pessoas que este produto é parecido a um que já muito gostaram (e conseguir utilizar a palavra produto aqui, tão bem, quase parece crime), chamando-lhe a sua “assinatura pessoal”. E se antes isto significava identificar um tipo de abordagem, hoje transformou-se em algo parecido a repetir atores, repetir tipos de plano, repetir piadas e sequências e até repetir as próprias histórias. E não é que parece que, como nas séries de televisão, cada vez que chegamos a um episódio novo acabamos por ficar cada vez pior. E eu que era tão entusiasta do Seu Jorge a fazer versões acústicas de David Bowie. E de tão inóspita expedição aparece de novo Wes Anderson com um filme em que o inacreditável se converte apenas em ridículo e em que o mundo se torna subtilmente muito parecido a histórias de encantar. E de um filme sobre crianças aparece algo criado por crianças e eu até diria para crianças se elas não fossem dotadas de inteligência. O ridículo aparece apenas pela tentativa de renovar a fórmula, realizar sequências e montar os cenários de maneira semelhante, e forçar isso numa história que nada mostra de interessante, passando pelo banal e acabando no forçado. De todas as vezes que alguma coisa é feita de novo, a ideia iniciática esmorece, os efeitos desaparecem, porque o conceito já não está lá, só a lembrança dele e as artífices maneiras de o disfarçar. E de mais pouca imaginação se precisa de ter para perceber o porquê de Lynne Ramsey ver pessoas a fazer fila para sair a meio do seu filme e este homem apenas ver pessoas a rir desbragadamente de humor que não exige muito da originalidade. Já dizia o Zeca Afonso “e quando o pão sabe a merda” etecetera e tal.


2 comentários:

  1. Apesar do apelo provocatório, e é nisso que as tuas crónicas se baseiam e se elevam, o tom argumentativo é quase arrasador. Também eu queria que o que tu afirmas não fosse verdade, mas é-o, infelizmente. Antes o cinema valesse ainda a pena, mas estou em crer que não. Pelo menos o ocidental, que é de uma mediocridade avassaladora e inquietante. Parabéns pela irreverência e pelo desassombro. Por isso foste já censurado. Bardamerda para os críticos do cinema da cocacola e das pipocas. Um abraço.

    João Madureira

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  2. Concordo em absoluto com o texto bons argumentos. O Louis comecei a ver, mas rapidamente me cansei, a receita é decididamente uma cópia do de Seinfield, não que isso seja totalmente mau, é apenas "cansativo". Continuo a achar que o cinema vale a pena, apenas há mais tralha, mas no meio disso continua a haver coisas bastante boas.

    parabéns pela nomeação já agora, fica a conhecer melhor este espaço.

    cumprimentos,
    cinemaschallenge.blogspot.com

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