A Sede do Mal
Foi neste momento, às três da manha, a fumar um cigarro,
ouvindo o Oh What a World! do Rufus
Wainwright ao mesmo tempo que olhava para a cara de parvo do Marco Horácio
dissolvida pelo fumo, que me apercebi do que era o cinema. Apenas um somatório
de luz, som, imagem e a história que compõe. Todas as formas de arte vêm apenas
do imaginário, uma aproximação à realidade única de cada um. O essencial então
seria a existência de algo nela, entenda-se na arte, que estivesse a alimentar
aquela parte não comum e que nunca conseguiríamos alcançar sem ela. Claro que,
pensando na questão dos famigerados gostos, cada um tenta alcançar aquilo que
lhe é mais atraente, sendo isto muito ajudado pelo significado que damos a cada
coisa. Quanto mais de nós conseguirmos enfiar no que gostarmos, quanto mais
conseguirmos juntar do nosso imaginário e fantástico pessoal, melhor. Esta é a
suprema dificuldade do cinema, superar a nossa própria imaginação em quase
todas as suas componentes, mas claro que isso depende muito da imaginação de
cada um.
Aqui olhei para o meu amigo imaginário. Estava à minha
frente, sentado com as pernas cruzadas. Parecia que ouvia o que eu pensava,
apesar de não ter orelhas, às vezes também falava para mim, mas também não
tinha boca. Na realidade nem sequer tinha cara, a minha imaginação não chegava
para tanto.
– É essa a magia do cinema? Superar a imaginação de cada
um, existir para além daquilo que pensamos existir? – Enquanto dizia isto, o
meu amigo imaginário esboçava um sorriso sem lábios.
– A magia do cinema é o que sai do pau do Daniel Radcliffe.
Aqui usei as minhas rugas de expressão que uso quando fico
ligeiramente irritado. Quase me apeteceu deixar de imaginar, não fosse a minha
vontade imensa de sempre discutir.
– É essa a razão de tanta gente gostar desse filme? O facto
de não haver esforço? O esforço de ter que pensar e o esforço que o personagem
principal não tem que fazer… A magia reduzida a não ter que saber nada para
fazer seja o que for… É disso que as pessoas gostam?
– Não, as pessoas gostam do que sai da ponta do pau do
Daniel Radcliffe.
– Vai-te lixar, estou farto de pessoas que só sabem provocar
e criticar!
Vou ver o “Touch of Evil” do Welles. A ver se acalmo o meu
espírito martirizado.
Assim sim, uma bela cena num contínuo take, 4 minutos de extraordinária mestria. Aparece uma bomba
depositada num carro, depois o Charlton Heston a fazer de mexicano, a sua mais
que tudo não mexicana a andar na rua e ainda um vendedor de rua. A certo
momento parece que até atravessam a fronteira e momentos depois explode o carro.
Ah, um filme Noir de Welles, nem
mais… E não é que aparece o próprio Welles? Gordo e manco, um polícia à moda
antiga. A intriga parece instalar-se bem, o Heston é um polícia mexicano de
renome que por acaso assistiu ao acidente que decorreu do lado Americano da
fronteira. O Welles não gosta do Heston porque veio meter o bedelho onde não
manda, só que toda a gente lhe diz que tem de tratar bem o Heston porque é
bonito e ele é feio, ou razão parecida. O Welles vai logo meter o bedelho em
todo o lado e mais algum no México. Atiram ácido ao Heston e depois descobre-se
que a perna manca do Welles lhe diz quem é o criminoso. Identificado o
criminoso correm todos para a casa do tipo.
– E é esse o Voldemort?
Parece que não é ele, o homem marcado pelo instinto da perna
do polícia fala como um maricas atrapalhado, mas não deve ser culpado. Momentos
depois encontram provas na casa do criminoso, o Heston fareja logo que aquilo
foi incriminação do Welles.
– Então é esse o Voldemort?
Não sei se é mesmo incriminação, mas agora parece. Então,
enquanto o Heston investiga os casos corruptamente resolvidos do polícia manco,
um bando de mafiosos mexicanos irrita a mulher não mexicana do Heston. O Welles
fica deprimido por causa da sua reputação prestes a ser manchada e começa a
beber a convite de um idiota mafioso mexicano, o coitado do manco era
alcoólico. A bela mulher não mexicana é raptada e aqui percebemos que há
marosca do Welles porque ele surge a falar com o chefe mafioso mexicano. Este
chefe é o bandido estúpido de serviço no filme. Então o Welles mata-o, não sei
se é por ser o tipo mais estúpido do filme e o Welles realizador não o querer
mais por lá. Se foi por isso merecia. De seguida, o Welles incrimina a mulher
do Heston por abuso de drogas, mas ela não é formalmente acusada de nada, era só
para manchar a reputação do Heston e ilibar-se a ele próprio.
– Então sempre é ele o Voldemort… Sabes que estes filmes
armados em intelectual são iguais aos outros, com mais ou menos jeito na arte.
O Heston decide limpar o nome e tenta arranjar uma gravação
onde o Welles confesse. A cena acaba com o Welles morto, o amigo do Welles
morto e o Heston todo contente com a não mexicana. Depois surge o procurador
que diz que afinal o gajo que o Welles incriminou era culpado e que ele só
plantava provas quando não as havia. E aparece a Marlene Dietrich a dizer
qualquer coisa espectacular…
Parece que o homem afinal não era tão mau, bêbado é que não
era assim tão espectacular. O Welles era, afinal, um polícia que sempre
trabalhou para o mesmo que o Heston.
– Então o Heston só arranjou com que matassem o tipo que
prendia os maus da fita? Então quem raio era o Voldemort?
– Ó Imaginário, parece que não era nenhum, ora f…
PS: Só quero expressar a minha tremenda admiração por Welles
e este filme, e que este texto não representa uma crítica ao mesmo, porque me
acredito incapaz de fazer uma. Em segunda nota só queria corrigir a errata do
último mês em que disse que o Yi-Yi era um filme Japonês. É que afinal foi
feito em Taiwan, e o realizador também é de lá, e como o filme não foi feito no
tempo das suásticas inclinadas, na realidade é chinês. Podia ter percebido isso
no filme porque toda a gente falava Mandarim, mas o meu Mandarim não é muito
fluente. Peço-vos para da próxima vez não terem vergonha e que, por favor, me
corrijam prontamente.
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