Libertem-no, sobretudo libertem-no, a ele e a
todos os judeus, perdão, negros, perdão, afro-americanos sujeitos a eugenia.
Depois de visualizada a película até fico espantado como o rapaz não se lembrou
de fazer uma ou duas referências a Ilsa, She Wolf of the SS no meio dos
filhos ilegítimos sem glória. Se bem que o pequeno flash, com o já glorioso Goebbels
de série B, possa ser considerado como tal, especialmente por todos aqueles
especuladores das redes sociais que acreditam veementemente em tudo o que
dizem. Mas não subestimem a Ilsa, até
o Pasolini lhe deitou um olho, apenas achou que o assunto poderia beneficiar de
uma boa carga de homossexualismo, mas diga-se, em abono da verdade, muito mais
longe da lógica eugénica antes investida, em parte por impossibilidade e em
parte por serem fascistas italianos, logicamente muito menos motivados para o
assunto. Assim dito, em sucedâneo aos fascistas que confundem fascio com falo na província de Salò,
ficamos desconcertados com o conteúdo. Não com o conteúdo de Salò, para o qual
desconcertantemente seria um eufemismo criminoso, mas sim com o do texto.
Para tudo isto afirmar não bastam belos efeitos e
trocadilhos irónicos, rododendros da escrita que muitas vezes passam por Redutio ad Absurdum. Estabelecendo agora
alguns paralelismos, comecemos pelo início. A ideia de um filme se impor como
um objeto de arte fica sempre subjacente àquilo que mostra e àquilo que nele se
pode, ou não, observar. Para isso se recorre a muitas técnicas e efeitos
(alguns até de carácter tão especial que exigem diretores especializados), tal
como na escrita. Mas no fundo encontra-se um conceito, uma imagem (não literal,
mas mais como as representações católicas) a transmitir. E sempre que assim se
consegue atingir a imagem desejada ficamos com um novo mundo, uma nova ideia.
Esta ideia não é propriamente algo que normalmente se consiga atingir
leigamente, sem o meio que se costuma designar por cultura, mas também não a
transmite. Os filmes não são culturais nem transmitem cultura. Não são algo
para educar nem para adicionar conhecimento. Como objetos de arte transmitem
apenas uma conceptualização de algo que alguém percebeu, identificou e quis
mostrar. Quero assim dizer, usando uma das tais figuras da falácia
anteriormente mencionada, que mostrar filmes e esperar que isso contribua para
o conhecimento de alguém é como esperar que um analfabeto funcional musical
toque uma música só de a ouvir. Não será impossível, mas é incrivelmente
difícil. Eles podem transmitir algo, mas esse algo não se sobrepõe, nem
substitui, o conhecimento. E já me desviei um pouco do tópico em mãos. Mas
percebendo isto, e usando toda esta lengalenga, se não há meios para perceber
apenas se pode ver. E assim, em vez do conceito, ficamos apenas com o efeito. E
por esta razão tanta gente se excita com efeitos especiais e personagens que
primam pelo termo anglo-saxónico coolness.
Basta alguém perceber isto para desdogmatizar a conceção de cinema e conseguir
fazer um belo filme apenas constituído por efeitos especiais. Assim se desafia
a arte, assim o desejou Quentin Compson, perdão, Quentin Tarantino.
Contra tudo o que seria expectável, este homem
absorveu tudo o que enxergou em filmes que vivem apenas de efeitos e conseguiu
mostrar algo bem feito quando racionalmente não o poderia ser. Para isso criou
um mundo de ambiguidade onde nada é certo ou, muito menos, sabido, uma ilusão
em que parece que está sempre a mostrar uma imagem inalcançável. Agora vamos
confundir mais um pouco e tentar perceber o
próximo passo da história. Tarantino decidiu que também era um ser cultural e
quis mostrar algo ao mundo, agora pela segunda vez. Mas
começando pelo princípio, Jesus Cristo deixou-se martirizar para mostrar
à humanidade que um ser humano pode ser dotado de bondade sem limites, sem
necessidade de vingança. Esse julgamento é divino e vem pelo inferno, uma
espécie de expiação dos maus e uma redenção dos bons. Mas confundindo um pouco mais, um filme pode
conceptualizar um inferno na Terra. Olhando para o seu filme anterior, vemos
que Tarantino retira os judeus do seu estado de neutros abastados, que
assumiram durante quase toda a história da humanidade, e converte-os em
vingadores extremamente competentes. Ao mesmo tempo salva o povo alemão, matando
todos os maus da fita, queimando-os numa sala de cinema ou, usando a referência
católica mais uma vez, expiando os seus males. Nesta nova fita vemos um cowboy
intencionalmente negro revoltar-se contra a escravidão imposta (muito mais do que
fisicamente, por redução à ignorância, mais uma vez) e imperdoável e,
juntando-se a um branco bonzinho alemão (ó ironia das ironias!) envia para o
inferno todos os brancos e pretos que aceitavam, e queriam ser, brancos (se bem
que se aqui estabelecêssemos um paralelismo, a sala de cinema anterior teria de
ter muita maior capacidade). Para fazer isto, Tarantino nem sequer muda o tom
dos seus filmes, utilizando o mesmo estilo irónico com que tanto ridicularizou
filmes de série B e, especialmente, A, para funcionar como uma espécie de
redentor da história dos povos. Ele consegue redimir a história, lavar a
imagem, porque é assim que agora se assume, alguém que tem a obrigação de
salvar e fazer perceber. Poderia dizer que para isso faltaria outro tipo de abordagem
e de conhecimento da História. Os argumentos destes filmes não exigem um
extenso conhecimento dos acontecimentos históricos, também porque se calhar
foram feitos sem eles, mas têm todos aqueles efeitos que, descontextualizados,
seriam ótimos, mas que para transmitir ideias são apenas artificiais e, às
vezes, mesmo insultuosos. Qualquer criança contemporânea, com a sua insensibilização
à violência e ao muito acumular de cultura artificial cinemática, pensaria que
destruir a cara de Hitler com uma metralhadora seria uma das coisas mais
espetaculares que se poderia fazer. Assim dito, parece uma brincadeira de mau
gosto, mas a mim parece-me que foi por plena inconsciência. Também fico assim
com mais um sonho destruído, saber que afinal o que tanto admirava nele não era
sequer intencional.