quarta-feira, 6 de abril de 2011

A Morte da 7ª Arte (Variação Stallone)

A Infância de Ivan


Às vezes penso como é possível uma senhora bastante adiposa poder usar as nádegas como orelhas de martelo. Deve ser por isso que frequentemente tenho pesadelos ao som de Goran Bregovic. Não são exactamente pesadelos, até porque a música não é má. Mas chegam a ser saturantes e cansativos. Acordo sempre cansado depois dessas noites, a pensar quando é que os porcos vão deixar de comer o carro. As imagens do meu sonho são sempre com as mesmas cenas, excepto algumas delas, que são cedidas pela memória. O último teve direito a cenas da minha infância. Quando tinha oito anos, mais ano menos ano, na altura do carnaval, disfarcei-me de Rambo. Mais especificamente de Rambo II porque tinha aquela cicatriz queimada mesmo em frente à orelha. Quando se tem esta idade não deve haver nada melhor do que andar por aí de metralhadora a matar tudo sem sequer apontar. Ou então ser um daqueles robôs gigantes como o Robocop ou o tipo que não devia conseguir mexer os olhos (porque quando lhe desfazem a cara aquela cena vermelha não se mexe). Digo isto porque hoje, quando me lembro destes momentos, penso em como é uma imbecilidade completa uma criança andar por aí a pensar que dar tiros nuns tipos é ser um herói. Também ninguém se lembrou de me vestir de Dadan


Eu via o Rambo como um herói porque ele matava os maus todos. Claro está que naquela altura eu pensava que todos os maus nasciam de geração espontânea, porque ninguém que tivesse mãe e pai podia ser tão mau como eles. Alguém que podia ter filhos não podia ser tão mau. Claro que quando me disseram a verdade, que isso da geração espontânea nem o Jesus Cristo, eu pensei “Fónix (porque naquela altura até tinha medo de pensar noutras palavras) Rambo, só para salvar um? Tudo bem que ele é americano e vale aí por uns dez, mas porra Rambo!”, não se faz isto a uma criança, desiludi-la assim. Foi por esta altura que descobri que o Rambo era um idiota, e ainda bem. Lembro-me de ser ainda criança e ver o “Monty Python and the Holy Grail”. Foi também por esta altura, a ver como estes homens ingleses gozavam com tudo o que existia e retratavam a humanidade como algo profundamente estúpido que me dei conta que não era apenas o Rambo o idiota. Comecei a pensar em tudo aquilo que eu via nos filmes e adorava: a eterna luta contra o mal, salvar o mundo do apocalipse (que, por esta altura, devia ser para mim o melhor tema para filme alguma vez inventado), andar aos tiros durante meia hora, ser o herói e ficar com a gaja toda boa… Tudo o que já tinha visto e revisto e repetido até ao infinito. E estas coisas, que eu considerava algo como uma realidade ideal não passavam de algo parecido ao menino da lágrima que estava pendurado na sala da minha avó. Mais tarde vim a descobrir o galicismo cliché, mas o conceito continuava igual. Este conceito veio-me à ideia no tempo em que andava a escrever muitos “a”s no meu caderno do primeiro ano, para aperfeiçoar a minha letra (que ainda hoje continua ilegível). Eu gostava de mostrar aquilo ao meu pai que, como é natural, não lhe ligava nenhuma, e eu descobri porquê. Quem é que iria ligar a um bando de letras repetidas até à exaustão? Claro que é bom para aprenderes a fazer, mas daí a quereres mostrar aquilo a toda a gente. Aquilo não tinha valor nenhum porque já tinha sido feito milhares de vezes antes de mim e ia continuar a ser feito, e se mudasse da caneta azul para a caneta preta não ia mudar nada. Foi aí que pensei, e se fossem os “a”s do Van Gogh? Bem, aí de certeza que alguém iria comprar aquela treta a peso de ouro ou platina. E era por serem mais bonitos que os meus? Muito provavelmente eram, mas era mesmo por serem do Van Gogh. Não eram os mais bonitos “a”s, mas eram dele e se eu fizesse o Céu Estrelado ninguém daria também tanto dinheiro por ele. Mas ninguém pode culpar o coitado, afinal, e mesmo sendo criança, achava os quadros dele de uma beleza extraordinária.


Tudo bem, mas o Rambo continua a matar tipos sem apontar e a dizer aquelas coisas todas heróicas, muito ao estilo do “Hasta la vista, baby!”. O conceito, pelo menos esse, era igual, o tipo musculado que queria salvar uma pessoa, mas ao menos um deles evitou o apocalipse, ou nem por isso. Os tiros, as explosões, as espadas de luz, os cowboys, o fim do mundo, a humanidade a estragar a natureza dos índios americanos ou do planeta dos índios azuis, o robô do futuro que parte tudo, a gaja boa e o herói que sofre, os dinaussauros vivos de novo, a Angelina Jolie em cima de um tronco… É tudo incrível ao estilo do Rambo, mas daí a serem o Céu Estrelado vai muito. Não têm nem de perto nem de longe o mesmo valor. Daí a minha estranheza quando descobri que afinal o cinema é uma arte, e que podia ter algo de novo, extraordinário e brilhante. E anda esta gente a fazer a mesma coisa até à exaustão como eu fazia os “a”s. Vim a descobrir aos poucos o verdadeiro cinema, algo que sentado no meu sofá podia denominar “cinema” como uma forma de arte. Podem ver e adorar os outros filmes e, se o fazem e os consideram bons, podem falar de cinema, mas agora de bom cinema não. Por favor…